O mais terrível
Luis Fernando Veríssimo
O mais terrível não era a menina me chamando de "tio" e pedindo um trocado, ela de pé no chão no asfalto e eu no meu carro de bacana. O mais terrível não era eu escolhendo a cara e a voz para dizer que não tinha trocado, desculpe, como se a vergonha tivesse um protocolo que a absolvesse. O mais terrível foi nem a naturalidade com que ela cuspiu na minha cara. O mais terrível foi que ela era tão pequena que a cusparada não me atingiu.
Somos boas pessoas, bons cidadãos e bons pais, mas somos tios relapsos. Nossas sobrinhas e nossos sobrinhos enchem as ruas de nossas cidades, cercam nossos carros, invadem nossas vidas e insistem que são nossa família, e não temos nada para lhes dar ou dizer, além de esmola ou "desculpe". Na família brasileira "tios" e sobrinhos têm um diálogo de ameaça e medo, revolta e remorso, e poucas palavras. Nenhum consolo possível, nenhuma esperança, nenhuma explicação. O que dizer a uma sobrinha cuja cabeça mal chega à janela do carro e tenta cuspir na cara do tio? Feio. Falta de educação. Papai do céu castiga. Paciência, minha filha, este é apenas um ciclo econômico e a nossa geração foi escolhida para este vexame, você aí desse tamanho pedindo esmola e eu aqui sem nada para te dizer, agora afasta que abriu o sinal. Não pergunte ao titio quem fez a escolha, é tudo muito complicado e, mesmo, você não entenderia a teoria. Vá cheirar cola, para passar. Vá morrer, para esquecer. Ou vá crescer, para me matar na próxima esquina.
A história, dizem, terminou, e os mocinhos ganharam. Os realistas, os antiutópicos, os racionais. Ficou provado que a solidariedade é antinatural e que cada um deve cuidar dos apetites dos seus. Ou seja: ninguém é "tio" de ninguém. A família humana é um mito, o sofrimento alheio é um estorvo e se a miséria à tua volta te incomoda, compra uma antena parabólica. Ninguém é insensível, dizem os mocinhos, mas a compaixão não funciona. Todos esses anos de convivência com a dor dos outros, que deviam ter nos educado para a compaixão, nos educaram para a autodefesa, para cuspir primeiro. Os bons sentimentos faliram, dizem os mocinhos. Confiemos o futuro ao mercado, que não tem sentimentos, que tritura gerações entre seus dedos invisíveis, pra que se envolver? Afasta do carro que abriu o sinal.
Mas mais terrível do que tudo é eu ficar aqui, escolhendo frases para encher o papel, até cuidando o estilo, já que é domingo. Como se fizesse alguma diferença. Como se isso fosse nos salvar, o tio da sua impotência e cumplicidade e a sobrinha anônima do seu destino. Desculpe.
Fonte: VERÍSSIMO, Luis Fernando; FONSECA, Joaquim da. Traçando Porto Alegre. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995, p. 87-88.
Leia com atenção o Texto 1 para responder à(s) questão(ões) seguinte(s)
Sobre o Texto 1, NÃO é correto afirmar que
a)
sugere medidas para tirar os menores da rua. |
b)
há uma reflexão histórica, social e econômica. |
c)
retrata uma triste situação do cotidiano urbano. |
d)
critica a sociedade indiferente ao terror da miséria. |
A melancolia percebida no Texto 1 é consequência, EXCETO
a)
do medo de ser assaltado. |
b)
da previsão sobre o futuro da criança. |
c)
de sentimentos de inércia e de incapacidade. |
d)
da depreciação do próprio ato de escrever. |
Quanto aos sentimentos despertados pelo Texto 1, NÃO é correto o que se afirma em:
a)
Autocrítica: “[...] ela de pé no chão no asfalto e eu no meu carro de bacana.” |
b)
Ironia: “Somos boas pessoas, bons cidadãos e bons pais, mas somos tios relapsos.” |
c)
Incapacidade: “Como se isso fosse nos salvar, o tio da sua impotência e cumplicidade e a sobrinha anônima do seu destino.” |
d)
Compaixão: “Todos esses anos de convivência com a dor dos outros, que deviam ter nos educado para a compaixão, nos educaram para a autodefesa, para cuspir primeiro.” |
A alternativa que melhor justifica o pedido de “desculpas” do autor é:
a)
Constata que a preocupação com o lucro está acima do ajuste social. |
b)
Demonstra que o problema da menina é resultado de políticas sociais. |
c)
Considera que seu ofício de escritor não contribui para alterar a situação. |
d)
Acredita que é a única comunicação possível diante da situação retratada. |
A suposta fala que NÃO foi dirigida à criança é:
a)
“Papai do céu castiga”. |
b)
“Paciência, minha filha”. |
c)
“Vá morrer, para esquecer”. |
d)
“Compra uma antena parabólica”. |
“Paciência, minha filha, este é apenas um ciclo econômico e a nossa geração foi escolhida para este vexame, você aí desse tamanho pedindo esmola e eu aqui sem nada para te dizer, agora afasta que abriu o sinal.”
No período acima, as vírgulas foram empregadas em “Paciência, minha filha, este é [...]”, para separar
a)
aposto. |
b)
vocativo. |
c)
adjunto adverbial. |
d)
expressão explicativa. |
Sobre a Redação Oficial, NÃO é correto afirmar que
a)
exige emprego do padrão formal de linguagem. |
b)
deve permitir uma única interpretação e ser estritamente impessoal. |
c)
sua finalidade básica é comunicar com impessoalidade e máxima clareza. |
d)
dispensa a formalidade de tratamento, uma vez que o comunicador e o receptor são o Serviço Público. |
“Na revisão de um expediente, deve-se avaliar, ainda, se ele será de fácil compreensão por seu destinatário. O que nos parece óbvio pode ser desconhecido por terceiros. O domínio que adquirimos sobre certos assuntos em decorrência de nossa experiência profissional muitas vezes faz com que os tomemos como de conhecimento geral, o que nem sempre é verdade. Explicite, desenvolva, esclareça, precise os termos técnicos, o significado das siglas e abreviações e os conceitos específicos que não possam ser dispensados.” (Manual de Redação Oficial da Presidência da República. p. 14).
Leia com atenção o Texto 2 para responder à(s) questão(ões) seguinte(s)
Sobre a Redação Oficial, pela leitura do Texto 2, pode-se concluir que
a)
a concisão de um texto está relacionada ao grau de especificação dos termos. |
b)
a padronização de termos e conceitos viabiliza a uniformidade dos documentos. |
c)
a revisão possibilita a substituição de termos, muitas vezes, desconhecidos pelo leitor. |
d)
claro é o texto que exige releituras mais aprofundadas. |
Analise o emprego das vírgulas no trecho: “Explicite, desenvolva, esclareça, precise os termos técnicos, o significado das siglas e abreviações e os conceitos específicos que não possam ser dispensados.”.
É CORRETO afirmar que
a)
separam termos deslocados e elipse de palavras. |
b)
separam orações subordinadas e expressões explicativas. |
c)
separam orações coordenadas e termos de uma enumeração. |
d)
nas 4 (quatro) ocorrências, as vírgulas exercem a mesma função. |
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