Por um desses quiproquós da vida cultural, a tradicionalização, ou a referência à tradição, tornou-se um tema dos mais presentes na poesia contemporânea brasileira, quer dizer, a que vem sendo escrita desde meados dos anos 80.
Pode parecer um paradoxo que a poesia desse período, a mesma que tem continuidade com ciclos anteriores de vanguardismo, sobretudo a poesia concreta, e se seguiu a manifestações antiformalistas de irreverência e espontaneísmo, como a poesia marginal, tenha passado a fazer um uso relutantemente crítico, ou acrítico, da tradição. Nesse momento de esgotamento do moderno e superação das vanguardas, instaura-se o consenso de que é possível recolher as forças em decomposição da modernidade numa espécie de apoteose pluralista. É uma noção conciliatória de tradição que, em lugar da invenção de formas e das intervenções radicais, valoriza a convencionalização a ponto de até incentivar a prática, mesmo que metalinguística, de formas fixas e exercícios regrados.
Ainda assim, não se trata de um tradicionalismo conservador ou "passadista", para lembrar uma expressão do modernismo dos anos 20. O que se busca na tradição não é nem o passado como experiência, nem a superação crítica do seu legado. Afinal, não somos mais como T. S. Eliot, que acreditava no efeito do passado sobre o presente e, por prazer de inventar, queria mudar o passado a partir da atualidade viva do sentimento moderno. Na sua conhecidíssima definição da tarefa do poeta moderno, formulada no ensaio "Tradição e talento individual", tradição não é herança. Ao contrário, é a conquista de um trabalho persistente e coletivo de autoconhecimento, capaz de discernir a presença do passado na ordem do presente, o que, segundo Eliot, define a autoconsciência do que é contemporâneo.
Nessa visada, o passado é continuamente refeito pelo novo, recriado pela contribuição do poeta moderno consciente de seus processos artísticos e de seu lugar no tempo. Tal percepção de que passado e presente são simultâneos e inter-relacionados não ocorre na ideia inespecífica de tradição que tratarei aqui. O passado, para o poeta contemporâneo, não é uma projeção de nossas expectativas, ou aquilo que reconfigura o presente. Ficou reduzido, simplesmente, à condição de materiais disponíveis, a um conjunto de técnicas, procedimentos, temas, ângulos, mitologias, que podem ser repetidos, copiados e desdobrados, num presente indefinido, para durar enquanto der, se der.
Na cena contemporânea, a tradição já não é o que permite ao passado vigorar e permanecer ativo, confrontando-se com o presente e dando uma forma conflitante e sempre inacabada ao que somos. Não implica, tampouco, autoconsciência crítica ou consciência histórica, nem a necessidade de identificar se existe uma tendência dominante ou, o que seria incontornável para uma sociedade como a brasileira, se as circunstâncias da periferia pós-colonial alteram as práticas literárias, e como.
Não estou afirmando que os poetas atuais são tradicionalistas, ou que se voltaram todos para o passado, pois não há no retorno deles à tradição traço de classicismo ou revivalismo. Eles recombinam formas, amparados por modelos anteriores, principalmente os modernos. A tradição se tornou um arquivo atemporal, ao qual recorre a produção poética para continuar proliferando em estado de indiferença em relação à atualidade e ao que fervilha dentro dela.
Até onde vejo, as formas poéticas deixaram de ser valores que cobram adesão à experiência histórica e ao significado que carregam. Os velhos conservadorismos culturais apodreceram para dar lugar, quem sabe, a configurações novas e ainda não identificáveis. Mesmo que não exista mais o "antigo", o esgotado, o entulho conservador, que sustentavam o tradicionalismo, tradição é o que se cultua por todos os lados.
Na literatura brasileira, que sempre sofreu de extrema carência de renovação e variados complexos de inferioridade e provincianismo, em decorrência da vida longa e recessiva, maior do que se esperaria, de modas, escolas e antiqualhas de todo tipo, essa retradicionalização desculpabilizada e complacente tem inegável charme liberador.
Revista Piauí, edição 61, 2011.
"Mesmo que não exista mais o "antigo", o esgotado, o entulho conservador, que sustentavam o tradicionalismo, tradição é o que se cultua por todos os lados." (7.° parágrafo)
No fragmento acima:
a)
o autor apresenta relação de causa e consequência entre o fato de não haver mais o "antigo", o esgotado o entulho conservador e haver a presença recorrente da tradição. |
b)
o autor conclui sua ideia principal, a de que a tradição é cultuada por todos os lados e supera o "antigo", o esgotado, o entulho conservador, traços que sustentam o tradicionalismo. |
c)
é apresentado um contraste entre as ideias expressas, ou seja, a tradição é cultuada por todos os lados, ainda que o "antigo", o esgotado, o entulho conservador não existam mais. |
d)
o autor expressa a alternância entre os gostos dos literatos, que cultuam tanto o tradicionalismo quanto o "antigo", o esgotado e o entulho conservador da literatura tradicional. |
e)
é apresentada uma justificativa para o fato de haver uma co-ocorrência tanto do "antigo", do esgotado, do entulho conservador quanto da tradição, que é cultuada por todos os lados. |
Assinale a alternativa correta quanto ao que se afirma sobre os elementos linguísticos empregados no texto.
a)
O emprego do sinal indicativo de crase no “a”, na expressão “a produção poética” (6.º parágrafo), não altera a correção gramatical. |
b)
No fragmento “Não implica, tampouco, autoconsciência crítica” (5.º parágrafo), o emprego da preposição “em” antes da expressão “autoconsciência” não altera a correção gramatical. |
c)
A substituição da expressão “tampouco” (5.º parágrafo) pela expressão “todavia” não altera a correção gramatical e o sentido original do texto. |
d)
A forma verbal “exista” (7.º parágrafo) pode ser flexionada no plural para concordar com a expressão “o antigo, o esgotado, o entulho conservador.” |
e)
A expressão “onde”, em “Até onde vejo, as formas poéticas deixaram” (7.º parágrafo), pode ser substituída por “aonde”, sem alterar a correção gramatical. |
Alternativa que trata da diferença entre "onde" e "aonde":
Onde: "em que lugar" (trata-se de local determinado).
Aonde: "para qual lugar" (transmite a ideia de movimento).
Logo, é correto concluir que a expressão em análise é um ponto demarcado, definido como limite, como parâmetro que dimensiona o alcance de "visão", tratando-se, portanto, de um ponto ou local determinado.
Assinale a alternativa cuja sequência verbal destacada constitui um exemplo de tempo composto.
a)
“Não estou afirmando que os poetas atuais são tradicionalistas” |
b)
“...um arquivo atemporal, ao qual recorre a produção poética para continuar proliferando“ |
c)
“as formas poéticas deixaram de ser valores que cobram adesão à experiência histórica” |
d)
“Pode parecer um paradoxo que a poesia desse período, a mesma que tem continuidade” |
e)
“tenha passado a fazer um uso relutantemente crítico, ou acrítico, da tradição". |
Nos fragmentos abaixo, extraídos do texto, a colocação pronominal foi alterada. Assinale a única alternativa correta.
a)
Ou que voltaram-se todos para o passado (6.º parágrafo) |
b)
Maior do que esperaria-se (último parágrafo) |
c)
Tradição é o que cultua-se por todos os lados. (7.º parágrafo) |
d)
E seguiu-se a manifestações antiformalistas (2.º parágrafo) |
e)
Não trata-se de um tradicionalismo conservador (3.º parágrafo) |
“Não implica, tampouco, autoconsciência crítica ou consciência histórica, nem a necessidade de identificar se existe uma tendência” (5.° parágrafo)
No fragmento acima, as orações de identificar e se existe uma tendência são, respectivamente,
a)
oração subordinada substantiva objetiva direta e oração subordinada substantiva objetiva direta. |
b)
oração subordinada substantiva completiva nominal e oração subordinada substantiva objetiva direta. |
c)
oração subordinada substantiva objetiva indireta e oração subordinada adverbial condicional. |
d)
oração subordinada substantiva completiva nominal e oração subordinada adverbial condicional. |
e)
oração subordinada substantiva objetiva indireta e oração subordinada substantiva objetiva direta. |
O autor do texto apresentado define os poetas atuais como aqueles que
a)
apresentam traços classicistas ou revivalistas. |
b)
se voltaram para o passado em busca de modelos. |
c)
são tradicionalistas que misturam traços modernistas. |
d)
recombinam formas, amparados por modelos anteriores. |
e)
veem a tradição como uma escolha de materiais disponíveis. |
Dentre as alternativas abaixo, assinale aquela cujas expressões são empregadas no texto como expressões sinônimas.
a)
“velhos conservadorismos culturais” e “tendência dominante” |
b)
“configurações novas e ainda não identificáveis” e “a poesia concreta” |
c)
“configurações novas e ainda não identificáveis” e “apoteose pluralista” |
d)
“apoteose pluralista” e “noção conciliatória de tradição” |
e)
“a poesia concreta” e “noção conciliatória de tradição” |
“Por um desses quiproquós da vida cultural, a tradicionalização, ou a referência à tradição, tornou-se um tema dos mais presentes na poesia contemporânea brasileira, quer dizer, a que vem sendo escrita desde meados dos anos 80.”
O fragmento em que o elemento por (ou pelo/pela) estabelece a mesma relação semântica do elemento por do fragmento acima é
a)
“Nessa visada, o passado é continuamente refeito pelo novo” (4.º parágrafo) |
b)
“sustentavam o tradicionalismo, tradição é o que se cultua por todos os lados” (7.º parágrafo) |
c)
“Eles recombinam formas, amparados por modelos anteriores” (6.º parágrafo) |
d)
“pela contribuição do poeta moderno consciente de seus processos artísticos” (4.° parágrafo) |
e)
“por prazer de inventar, queria mudar o passado a partir da atualidade viva” (3.º parágrafo) |
Todos os fragmentos abaixo foram extraídos do texto e alterados em sua pontuação. Leia-os e, em seguida, assinale a alternativa que apresenta o(s) fragmento(s) que se mantém(êm) correto(s) após essa alteração.
I. Não é uma projeção de nossas expectativas ou aquilo que reconfigura o presente (4.º parágrafo)
II. Afinal, não somos mais como T. S. Eliot que acreditava no efeito do passado (3.º parágrafo)
III. Ficou reduzido, simplesmente, à condição de materiais disponíveis a um conjunto de técnicas (4.º parágrafo)
Está(ão) correto(s)
a)
apenas I. |
b)
apenas II. |
c)
apenas III. |
d)
apenas I e II. |
e)
apenas II e III. |
Assinale a alternativa correta quanto ao que se afirma abaixo.
a)
Em “A tradição se tornou um arquivo atemporal ao qual recorre a produção poética (6.º parágrafo)”, o pronome relativo funciona como objeto direto. |
b)
Em “as circunstâncias da periferia pós-colonial alteram as práticas literárias, e como.” (5.º parágrafo), a vírgula pode ser retirada sem prejuízo ao texto. |
c)
Em “A tradição se tornou um arquivo atemporal” (6.° parágrafo), o pronome também pode ser colocado após a forma verbal, visto que se trata de verbo com sujeito explícito. |
d)
Em “é possível recolher as forças em decomposição da modernidade” (2.° parágrafo), a oração destacada é subordinada substantiva subjetiva. |
e)
Em “ideia inespecífica de tradição que tratarei aqui” (4.° parágrafo) e em “aquilo que reconfigura o presente” (4.° parágrafo), os pronomes relativos destacados têm a mesma função sintática. |
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