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Comentários / Ministério Público Estadual - Rondônia - Técnico - FUNCAB - 2012 - Genérica 2 - Outros - (16 a 20) (Genérica)


Um peixe

               Virou a capanga de cabeça para baixo, e os
peixes espalharam-se pela pia. Ele ficou olhando, e
foi então que notou que a traíra ainda estava viva. Era
o maior peixe de todos ali, mas não chegava a ser
grande: pouco mais de um palmo. Ela estava
mexendo, suas guelras mexiam-se devagar, quando
todos os outros peixes já estavam mortos. Como que
ela podia durar tanto tempo assim fora d'água?...
              Teve então uma ideia: abrir a torneira, para ver
o que acontecia. Tirou para fora os outros peixes:
lambaris, chorões, piaus; dentro do tanque deixou só
a traíra. E então abriu a torneira: a água espalhou-se
e, quando cobriu a traíra, ela deu uma rabanada e
disparou, ele levou um susto – ela estava muito mais
viva do que ele pensara, muito mais viva. Ele riu, ficou
alegre e divertido, olhando a traíra, que agora tinha
parado num canto, o rabo oscilando de leve, a água
continuando a jorrar da torneira. Quando o tanque se
encheu, ele fechou-a.
              – E agora? – disse para o peixe. – Quê que eu
faço com você?...
              Enfiou o dedo na água: a traíra deu uma
corrida, assustada, e ele tirou o dedo depressa.
              – Você tá com fome?... E as minhocas que
você me roubou no rio? Eu sei que era você;
devagarzinho, sem a gente sentir... Agora está aí,
né?... Tá vendo o resultado?...
              O peixe, quieto num canto, parecia escutar.
              Podia dar alguma coisa para ele comer. Talvez
pão. Foi olhar na lata: havia acabado. Que mais? Se a
mãe estivesse em casa, ela teria dado uma ideia – a
mãe era boa para dar ideias. Mas ele estava sozinho.
Não conseguia lembrar de outra coisa. O jeito era ir
comprar um pão na padaria. Mas sujo assim de barro,
a roupa molhada, imunda?
              – Dane-se – disse, e foi.
              Era domingo à noite, o quarteirão
movimentado, rapazes no footing , bares cheios.
Enquanto ele andava, foi pensando no que
acontecera. No começo fora só curiosidade; mas
depois foi bacana, ficou alegre quando viu a traíra
bem viva de novo, correndo pela água, esperta. Mas o
que faria com ela agora? Matá-la, não ia; não, não
faria isso. Se ela já estivesse morta, seria diferente;
mas ela estava viva, e ele não queria matá-la. Mas o
que faria com ela? Poderia criá-la; por que não?
Havia o tanquinho do quintal, tanquinho que a mãe
uma vez mandara fazer para criar patos. Estava
entupido de terra, mas ele poderia desentupi-lo,
arranjar tudo; ficaria cem por cento. É, é isso o que
faria. Deixaria a traíra numa lata d'água até o dia
seguinte e, de manhã, logo que se levantasse, iria
mexer com isso.
              Enquanto era atendido na padaria, ficou
olhando para o movimento, os ruídos, o vozerio do
bar em frente. E então pensou na traíra, sua trairinha,
deslizando silenciosamente no tanque da pia, na
casa escura. Era até meio besta como ele estava
alegre com aquilo. E logo um peixe feio como traíra,
isso é que era o mais engraçado.
              Toda manhã – ia pensando, de volta para casa
– ele desceria ao quintal, levando pedacinhos de pão
para ela. Além disso, arrancaria minhocas, e de vez
em quando pegaria alguns insetos. Uma coisa que
podia fazer também era pescar depois outra traíra e
trazer para fazer companhia a ela; um peixe sozinho
num tanque era algo muito solitário.
              A empregada já havia chegado e estava no
portão, olhando o movimento.
              – Que peixada bonita você pegou...
              – Você viu?
              –Umabeleza...Tematé uma trairinha.
              – Ela foi difícil de pegar, quase que ela
escapole; ela não estava bem fisgada.
              –Traíra é duro de morrer, hem?
              – Duro de morrer?...
              Ele parou.
              – Uai, essa que você pegou estava vivinha na
hora que eu cheguei, e você ainda esqueceu o tanque
cheio d'água... Quando eu cheguei, ela estava toda
folgada, nadando. Você não está acreditando? Juro.
Ela estava toda folgada, nadando.
              – Eaí?
              –Aí? Uai, aí eu escorri a água para ela morrer;
mas você pensa que ela morreu? Morreu nada! Traíra
é duro de morrer, nunca vi um peixe assim. Eu soquei
a ponta da faca naquelas coisas que faz o peixe
nadar, sabe? Pois acredita que ela ainda ficou
mexendo? Aí eu peguei o cabo da faca e esmaguei a
cabeça dele, e foi aí que ele morreu. Mas custou, ô
peixinho duro de morrer! Quê que você está me
olhando?
              – Por nada.
              – Você não está acreditando? Juro; pode ir lá
na cozinha ver: ela está lá do jeitinho que eu deixei.
              Ele foi caminhando para dentro.
              – Vou ficar aqui mais um pouco – disse a
empregada. – depois vou arrumar os peixes, viu?
              – Sei.
              Acendeu a luz da sala. Deixou o pão em cima
da mesa e sentou-se. Só então notou como estava
cansado.

(VILELA, Luiz,O violino e outros contos. 7ª ed. São Paulo: Ática, 2007. p. 36-38.)
 

VOCABULÁRIO:

Capanga: bolsa pequena, de tecido, couro ou
plástico, usada a tiracolo.
 

footing: passeio a pé, com o objetivo de
arrumar namorado(a).

Guelra: estrutura do órgão respiratório da
maioria dos animais aquáticos.

Vozerio: som de muitas vozes juntas.

Questão:

Em relação ao SE em "(...) Se a mãe estivesse em casa, ela teria dado uma ideia (...)", é correto afirmar que,morfologicamente, o termo é:

Resposta errada
a)

uma conjunção subordinativa integrante, ou seja, é elemento de ligação entre a oração subordinada substantiva direta e a oração principal.

Resposta correta
b)

uma conjunção subordinat iva adverbial condicional, ou seja, é elemento de ligação entre a oração subordinada adverbial condicional e a oração principal.

Resposta errada
c)

pronome reflexivo, pois indica que a ação expressa volta-se sobre o próprio sujeito da ação verbal, nele se refletindo.

Resposta errada
d)

índice de indeterminação do sujeito, porque serve para deixar indeterminado um sujeito de 3ª pessoa, junto ao verbo intransitivo.

Resposta errada
e)

pronome apassivador, porque associa-se ao verbo transitivo para garantir o sentido passivo pretendido para a voz verbal, ou seja, contribui para a caracterização da voz do verbo.

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