Os jogos preservam o aspecto mais sutil da cultura. Com as artes, técnicas, ciências, religiões, eles indicam o refinamento ou o atraso de uma sociedade, com frutos políticos imediatos. É impensável a democracia ateniense sem as maneiras de exercitar o corpo e a mente praticadas pelos jovens guerreiros, depois cidadãos soberanos. A ética, disciplina hoje confundida com um sistema abstrato de valores, na Grécia começava no aprimoramento corporal. Para enfrentar os inimigos, ou deles fugir com honra, era necessário bem usar o corpo. A postura correta na batalha, que se aprendia na tenra idade, decidia a vitória. Com o tempo, o que era somático foi traduzido (por metáfora) à mente. A pessoa que aprendeu a bem jogar com o corpo e a alma tem condições éticas de exercer a cidadania com maior vigor.
Os jogos servem, desde longa data, para pensar fenômenos complexos como a guerra, a economia, a política. No século XVII, em que a razão de Estado se firmou, Blaise Pascal reconstruiu, a partir do jogo, a moralidade, a política, a teologia. Só Deus joga com absoluta certeza. E ganha sempre. No caso humano, tudo é incerto, sobretudo no campo das leis e da política. Tal antropologia, que hoje volta a ser assunto de interesse filosófico e político, é nuclear na história do pensamento moderno. Nela, importa a ideia do cálculo como elemento básico da política, plataforma da razão de Estado. O governante que sabe calcular as suas oportunidades e as de seus inimigos tem condições de, pelo menos, desrespeitar sem muitos prejuízos as regras normais da diplomacia ou de política interna.
Não por acaso Raymond Aron compara o trato internacional à estrutura do football association. Em primeiro plano, é preciso ver quantos jogadores são necessários, quais meios lícitos são facultados. Depois vem o modo pelo qual eles se distribuem em campo, como unem esforços e desarticulam o adversário. Tais pontos são primários. Ademais, temos o virtuosismo técnico e a qualidade moral dos jogadores, que não raro decidem campeonatos. Finalmente, o árbitro interpreta as regras e aplica as penalidades.
À diferença do futebol, diz Aron, as relações internacionais, movidas pelas armas e pela diplomacia, não são determinadas com precisão. Sua complexidade aumenta no acúmulo de interesses e na vontade de predomínio que nenhum estado pode abandonar, pois ali residem a segurança e a sobrevivência para seu povo. É nesse ponto que, julgo, o grande pensador deixa de lado um elemento vital do futebol e do jogo político. Penso na torcida e nos sócios dos clubes. E nos militantes que asseguram a força das agremiações políticas. Sem torcedores não existe futebol. Sem militância, somem os coletivos dedicados à ordem pública.
(Roberto Romano. O Estado de S. Paulo, A2, Espaço Aberto, 5 de março de 2011, com adaptações)
É correto afirmar:
a)
Os dois autores citados defendem opiniões divergentes quanto às condições em que se desenvolvem as relações entre governantes na defesa dos interesses de suas nações, concordando apenas em que esses governantes possam apelar tanto para a guerra quanto para a diplomacia. |
b)
A preparação, essencial para a disputa esportiva, torna-se dispensável, por vezes, no jogo diplomático, devido às incertezas que cercam as relações entre os países na tentativa de auferir o maior número possível de vantagens. |
c)
A incerteza que caracteriza habitualmente as ações humanas leva a um comprometimento das relações diplomáticas entre autoridades de diferentes nações, pois cada uma delas tem seus próprios interesses, que devem ser defendidos a qualquer preço. |
d)
O desenvolvimento do assunto se faz pela associação entre jogos e política, com seus recursos e técnicas, levando-se ainda em conta o acaso que rege os múltiplos interesses dos envolvidos na situação a ser decidida. |
e)
A imprecisão que permeia as tensões existentes nas relações entre países e os interesses imediatos de seus governantes compromete a dinâmica do jogo político que, diferentemente do futebol, não se atém a regras predeterminadas. |
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