1 A questão do tempo livre — o que as pessoas fazem com ele, que chances eventualmente oferece o seu desenvolvimento
— não pode ser formulada em generalidade abstrata. A expressão, de origem recente — aliás, antes se dizia ócio, e este era um
privilégio de uma vida folgada e, portanto, algo qualitativamente distinto e muito mais grato —, opõe-se a outra: à de tempo não
4 livre, aquele que é preenchido pelo trabalho e, poderíamos acrescentar, na verdade, determinado de fora.
O tempo livre é acorrentado ao seu oposto. Essa oposição, a relação em que ela se apresenta, imprime-lhe traços
essenciais. Além do mais, muito mais fundamentalmente, o tempo livre dependerá da situação geral da sociedade. Mas esta, agora
7 como antes, mantém as pessoas sob um fascínio. Decerto, não se pode traçar uma divisão tão simples entre as pessoas em si e seus
papéis sociais. (...) Em uma época de integração social sem precedentes, fica difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas
pessoas, além do determinado pelas funções. Isso pesa muito sobre a questão do tempo livre. Mesmo onde o encantamento se
10 atenua e as pessoas estão ao menos subjetivamente convictas de que agem por vontade própria, isso ainda significa que essa
vontade é modelada por aquilo de que desejam estar livres fora do horário de trabalho.
A indagação adequada ao fenômeno do tempo livre seria, hoje, esta: “Com o aumento da produtividade no trabalho, mas
13 persistindo as condições de não-liberdade, isto é, sob relações de produção em que as pessoas nascem inseridas e que, hoje como
antes, lhes prescrevem as regras de sua existência, o que ocorre com o tempo livre?” (...) Se se cuidasse de responder à questão
sem asserções ideológicas, tornar-se-ia imperiosa a suspeita de que o tempo livre tende em direção contrária à de seu próprio
16 conceito, tornando-se paródia deste. Nele se prolonga a não-liberdade, tão desconhecida da maioria das pessoas não-livres como
a sua não-liberdade em si mesma.
Podemos esclarecer isso de maneira simples por meio da ideologia do hobby. Na naturalidade da pergunta sobre qual
19 hobby se tem, está subentendido que se deve ter um, provavelmente também já escolhido de acordo com a oferta do negócio do
tempo livre. Liberdade organizada é coercitiva: “Ai de ti se não tens um hobby, se não tens ocupação para o tempo livre! Então
tu és um pretensioso ou antiquado, um bicho raro, e cais em ridículo perante a sociedade, a qual te impinge o que deve ser o
22 teu tempo livre.” Tal coação não é, de nenhum modo, somente exterior. Ela se liga às necessidades das pessoas sob um
sistema funcional. No camping — no antigo movimento juvenil, gostava-se de acampar —, havia protesto contra o tédio e o
convencionalismo burgueses. O que os jovens queriam era sair, no duplo sentido da palavra. Passar-a-noite-a-céu-aberto equivalia
25 a escapar da casa, da família. Essa necessidade, depois da morte do movimento juvenil, foi aproveitada e institucionalizada pela
indústria do camping. Ela não poderia obrigar as pessoas a comprar barracas e motor homes, além de inúmeros utensílios
auxiliares, se algo nas pessoas não ansiasse por isso; mas a própria necessidade de liberdade é funcionalizada e reproduzida pelo
28 comércio; o que elas querem lhes é, mais uma vez, imposto. Por isso, a integração do tempo livre é alcançada sem maiores
dificuldades; as pessoas não percebem o quanto não são livres lá onde mais livres se sentem, porque a regra de tal ausência de
liberdade lhes foi abstraída.
T. W. Adorno. Palavras e sinais, modelos críticos 2. Maria Helena Ruschel (Trad.). Petrópolis: Vozes, 1995, p. 70-82 (com adaptações).
Considerando os sentidos e aspectos linguísticos do texto acima, julgue o(s) item(ns):
Nas linhas de 1 a 5, nos trechos em que se afirma que “tempo livre” opõe-se a “tempo não-livre” e que “tempo livre é acorrentado ao seu oposto”, a justaposição de idéias contrárias entre si fragiliza a coerência textual e impossibilita a definição do conceito de “tempo livre”.
Certa. |
Errada. |
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