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Comentários / Prefeitura de Natal - RN (Prefeitura Municipal de Natal) - Assistente Social - IDECAN (Instituto de Desenvolvimento Educacional, Cultural e Assistencial Nacional) - 2016


Texto II

Quem sabe Deus está ouvindo

Outro dia eu estava distraído, chupando um caju na varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde

botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem

sequer me dar conta do que fazia.

Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saía da

terra, em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei cedo, e vi que durante a noite aquela coisa verde lançara

para o ar um caule com pequenas folhas. É impressionante a rapidez com que essa plantinha cresce e vai abrindo folhas

novas. Notei que a empregada regava com especial carinho a planta, e caçoei dela:

? Você vai criar um cajueiro aí?

Embaraçada, ela confessou: tinha de arrancar a mudinha, naturalmente; mas estava com pena.

? Mas é melhor arrancar logo, não é?

Fiquei em silêncio. Seria exagero dizer: silêncio criminoso ? mas confesso que havia nele um certo remorso. Um

silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um cajueiro, e seria uma tolice permitir que ele crescesse ali mais alguns

centímetros, sem nenhum futuro. Eu fora o culpado, com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isso a

empregada não sabe; ela pensa que tudo foi obra do acaso. Arrancar a plantinha com a minha mão ? disso eu não seria

capaz; nem mesmo dar ordem para que ela o fizesse. Se ela o fizer darei de ombros e não pensarei mais no caso; mas

que o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas

igualmente ignaros: eu, o deus da Vida; ela, o da Morte.

Hoje pela manhã ela começou a me dizer qualquer coisa ? "seu Rubem, o cajueirinho..." ? mas o telefone tocou, fui

atender, e a frase não se completou. Agora mesmo ela voltou da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e

transplantou para ele a mudinha.

Veio me mostrar:

? Eu comprei um vaso...

? Ahn...

Depois de um silêncio, eu disse:

? Cajueiro sente muito a mudança, morre à toa...

Ela olhou a plantinha e disse com convicção:

? Esse aqui não vai morrer, não senhor.

Eu devia lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo, daqui a uma, duas semanas. Ela espera, talvez, que eu o leve

para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem onde plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse

pela compra do vaso, e ficara aliviada com a minha indiferença. Antes de me sentar para escrever, eu disse, sorrindo,

uma frase profética, dita apenas por dizer:

? Ainda vou chupar muito caju desse cajueiro.

Ela riu muito, depois ficou séria, levou o vaso para a varanda, e, ao passar por mim na sala, disse baixo com certa

gravidade:

? É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está ouvindo o que o senhor está dizendo...

Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros

assuntos maiores.

(BRAGA, Rubem, 1993-1990. 200 crônicas escolhidas ? 31ª ed. ? Rio de Janeiro: Record, 2010.)

Questão:

De acordo com o sentido global do texto, o segmento que contém, em destaque, o mote desencadeador para a

escrita dessa crônica é:

Resposta errada
a)

“Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando." (2º§)

Resposta errada
b)

Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros assuntos maiores." (19º§)

Resposta errada
c)

“Eu fora o culpado, com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isso a empregada não sabe; ela pensa que tudo foi obra do acaso." (6º§)

Resposta correta
d)

“Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem sequer me dar conta do que fazia." (1º§)

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