Sempre se falou mal de funcionários, inclusive dos que passam a hora do expediente escrevinhando literatura. Não sei se esse tipo de burocrata-escritor ainda existe. A racionalização do serviço público, ou o esforço para essa racionalização, trouxe modificações sensíveis ao ambiente de nossas repartições, e é de crer que as vocações literárias manifestadas à sombra de processos se hajam ressentido desses novos métodos de trabalho.
E por que se maldizia tanto o literato-funcionário? Porque desperdiçava os minutos de seu dia, reservados aos interesses da Nação, no trato de quimeras pessoais. A Nação pagava-lhe para estudar papéis obscuros e emaranhados, ordenar casos difíceis, promover medidas úteis, ouvir com benignidade as “partes”. Em vez disso, nosso poeta afinava a lira, nosso romancista convocava suas personagens, e toca a povoar o papel da repartição com palavras. Figuras e abstrações que em nada adiantam à sorte do público. É bem verdade que esse público, logo em seguida, ia consolar-se de suas penas na trova do poeta ou no mundo imaginado pelo ficcionista.
O certo é que um e outro são inseparáveis, ou antes, o funcionário determina o escritor. O emprego do Estado concede com que viver, de ordinário sem folga, e essa é condição ideal para bom número de espíritos: certa mediania que elimina os cuidados imediatos, porém não abre perspectiva de ócio absoluto. O indivíduo tem apenas a calma necessária para refletir na mediocridade de uma vida que não conhece a fome nem o fausto; sente o peso dos regulamentos, que lhe compete observar ou fazer observar; o papel barra-lhe a vista dos objetos naturais, como uma cortina parda. É então que intervém a imaginação criadora, para fazer desse papel precisamente o veículo de fuga, sorte de tapete mágico, em que o funcionário embarca, arrebatando consigo a doce ou amarga invenção, que irá maravilhar outros indivíduos, igualmente prisioneiros de outras rotinas, por este vasto mundo de obrigações não escolhidas.
(Carlos Drummond de Andrade, Passeios na ilha)
A mediania a que se refere o cronista no 3.º parágrafo pode ser adequadamente esclarecida por meio do seguinte segmento do texto:
a)
A racionalização do serviço público (...) trouxe modificações sensíveis ao ambiente de nossas repartições (...) |
b)
(...) esse público, logo em seguida, ia consolar-se de suas penas na trova do poeta ou no mundo imaginado pelo ficcionista. |
c)
(...) intervém a imaginação criadora (...) arrebatando consigo a doce ou amarga invenção (...) |
d)
(...) apenas a calma necessária para refletir na mediocridade de uma vida que não conhece a fome nem o fausto (...). |
e)
Figuras e abstrações que em nada adiantam à sorte do público. |
Copyright © Tecnolegis - 2010 - 2024 - Todos os direitos reservados.