Se examinarmos as fábulas populares, verificaremos que elas representam dois tipos de transformação social, sempre com final feliz. Num primeiro tipo, existe um príncipe que, por alguma circunstância, se vê reduzido a guardador de porcos ou alguma outra condição miserável, para depois reconquistar sua condição real. Num segundo caso, existe um jovem pastor que não possuiu nada desde o nascimento e que, por virtude própria ou graça do destino, consegue se casar com a princesa e tornar-se rei.
Os mesmos esquemas valem para as protagonistas femininas: a donzela nobre é vítima de uma madrasta (Branca de Neve) ou de irmãs invejosas (Cinderela), até que um príncipe se apaixone por ela e a conduza ao vértice da escala social. Ou então uma camponesa pobre supera todas as desvantagens da origem e realiza núpcias principescas.
Poderíamos pensar que as fábulas do segundo tipo são as que exprimem mais diretamente o desejo popular de uma reviravolta dos papéis sociais e dos destinos individuais, ao passo que as do primeiro tipo deixam aparecer tal desejo de forma mais atenuada, como restauração de uma hipotética ordem precedente. Mas, pensando bem, os destinos extraordinários do pastorzinho ou da camponesa representam apenas uma ilusão miraculosa e consoladora, ao passo que os infortúnios do príncipe ou da jovem nobre associam a imagem da pobreza com a ideia de um direito subtraído, de uma justiça a ser reivindicada, isto é, estabelecem no plano da fantasia um ponto que será fundamental para toda tomada de consciência da época moderna, da Revolução Francesa em diante.
No inconsciente coletivo, o príncipe disfarçado de pobre é a prova de que cada pobre é, na realidade, um príncipe que sofreu uma usurpação de poder e por isso deve reconquistar seu reino. Quando cavaleiros caídos em desgraça triunfarem sobre seus inimigos, hão de restaurar uma sociedade mais justa, na qual será reconhecida sua verdadeira identidade.
(Adaptado de Ítalo Calvino, Por que ler os clássicos)
Está clara e correta a redação deste livre comentário sobre o texto:
a)
O escritor Ítalo Calvino manifesta uma grande acuidade na leitura das fábulas populares, interpretandoas em suas estruturas profundas. |
b)
Tendo em vista uma leitura mais acurada do texto, se perceberá de que as simplórias fábulas populares podem até deixar de sê-las. |
c)
Não há pessoa pobre em cuja aspiração acabe sendo uma forma de compensar sua condição, imaginando- se um nobre disfarçado. |
d)
Estão nos destinos extraordinários toda a argúcia das fábulas populares, aonde as reviravoltas simbolizam igualmente transtornos sociais. |
e)
É engenhosa a sensação de um direito subtraído, uma vez que assim se pode aspirar a ser reconstituído, promovendo-se a propalada justiça. |
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