01 Era batata. Eu acordava, abria a porta do quarto e 02 lá estava ele regendo sua caixa de som. Meu pai queria 03 ser maestro. Foi contador. Nunca estudou a música que 04 tanto ama, mas empunhava um lápis à guisa de batuta 05 e nos acordava aos domingos de manhã comandando 06 um poderoso Tchaikovsky nas caixas do três em um. 07 Talvez por isso não tenha conseguido que cultivássemos 08 nosso gosto pelo repertório clássico. Achávamos chata 09 a música do papai. Dali a algumas horas, as caixas seriam 10 devolvidas ao seu verdadeiro dono, o Rei Roberto, que 11 praticamente morava ali dentro. Das caixas e do coração 12 de minha mãe. Separaram-se. Não só por suas diferenças 13 musicais. 14 Eu era adolescente e meu pai passou, então, a nos 15 buscar para passear nos fins de semana. Sem ter ideia 16 do que poderia ser outra coisa divertida a se fazer, nos 17 levava a óperas e concertos. Foi aí que o entendi. Na 18 verdade, foi aí que o conheci. Ele e um pouco de 19 Mozart, Bach, Verdi, Puccini e outros populares da música 20 erudita. Passei a gostar do som que me acordava aos 21 domingos e um tanto mais de meu pai. Abri meus 22 ouvidos e a música entrou me abrindo o coração. 23 É um mistério, ponto. A música clássica não recruta 24 a razão para nos tocar a alma. Narra e conta através 25 de um alfabeto de sons e pode nos fazer chorar sem 26 que saibamos _____. É arte em sua forma pura. 27 Há uma cena linda no filme "A Vida dos Outros", em 28 que um espião da RDA passa dias com fones de ouvido 29 no sótão de uma casa à escuta do casal suspeito. Um 30 clássico é colocado na vitrola e ele vai às lágrimas. Até 31 os brutos se rendem a uma sonata de Bach. Difícil é 32 vencer a velocidade dos dias e parar para ouvir. 33 Apesar de meu pai, sou menos assídua do que 34 gostaria às salas de concerto. Resolvemos, então, fazer 35 uma assinatura da Osesp para ordenar os encontros 36 com nossa alma. No último concerto _____ fomos, 37 constava uma obra de Scriabin, um compositor ____ 38 eu nunca tinha ouvido falar. Não quer dizer nada, 39 conheço muito pouco e sempre atribuo nomes 40 estranhos do programa à minha ignorância. Pois o tal 41 Scriabin me pôs de volta menina, sentada de olhos 42 arregalados na plateia, com o desconhecido a me fisgar 43 o coração. Como dizia meu pai: há que esticar os ouvidos.
Adaptado de: FRAGA, Denise. O que os ouvidos ouvem o coração sente. Folha de São Paulo on-line, 24/01/2016, acessado em 08/02/2016. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/denisefraga/2016/01/1732653-oque-os-ouvidos-ouvem-o-coracao-sente.shtml
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