Olho para o monitor à minha frente e lembro como, faz tão pouco tempo, eu estaria diante de uma pilha de laudas em branco, ajeitando pelo menos duas delas na máquina de escrever com uma folha de 5 papel-carbono ensanduichada entre elas. Os erros eram apagados com uma sucessão de xis e as emendas feitas laboriosamente a caneta, resultando disso um texto imundo e desfavoravelmente comparável a um papiro deteriorado. Dicionário era na base do le- 10 vantamento de peso e da lupa de leitura e descobrir se o nome de um sujeito era com q ou com k às vezes demandava até pesquisa telefônica. E, depois de escrever a matéria, ainda se tinha de enfiá-la num malote e rezar para que chegasse a tempo. 15 Hoje acho que teria dificuldade em encontrar papel-carbono para comprar, a juventude nem sabe o que é máquina de escrever, os dicionários, enciclopé- dias e até papiros deteriorados estão a um par de cliques de distância e tudo, de textos a ilustrações, se 20 manda por via eletrônica. Claro, ninguém ou quase ninguém tem saudade dos velhos tempos trabalho- sos, até porque não adianta e quem não gostar pode descer do bonde. E minha situação não é diferente, mas de vez em quando fico pensando em certos pro- 25 gressos e cá me ocorrem algumas dúvidas. Uma das vantagens atuais em que mais se fala é a possibilidade de trabalhar em casa que agora muita gente tem, em vez de se engravatar, pegar transporte ou se estressar de carro e comparecer a um escritório 30 todos os dias. Há cada vez mais felizardos que traba- lham de bermuda, sem camisa e até à beira de uma piscina, almoçam comidinha caseira e econômica, estão na vida que pediram a Deus. Mas acho que, se, em certos casos, isso é verdade, em outros nem tan- 35 to, pelo menos a longo prazo. Será que é melhor mes- mo não conviver mais com colegas, não participar do bom e do educativamente chato que a convivência diária do trabalho enseja? Será que podemos mesmo dispensar, sem grande prejuízo, as amizades feitas 40 assim, a experiência e o conhecimento que assim nos adviriam? E, se essa prática dá certo no trabalho, por que não dará na escola? Os estudantes teriam aulas pela Internet, com diversas vantagens sobre o siste- ma atual, dispendioso e cheio de riscos, ocasionados 45 até mesmo pela convivência com colegas violentos ou inconvenientes. Não tenho tanta certeza dessas vantagens, como acho que pelo menos alguns de vocês também não têm. Sei de gente que dedica todas as suas horas va- 50 gas à Internet, no sem-número de grupos de que se pode participar. Assim mesmo, não sobra tempo para responder à enxurrada diária de e-mails e mensagens variadas. O contato pessoal direto, já ameaçado pelo medo que temos de sair (embora também tenhamos 55 medo de ficar em casa, a vida é dura), se torna, para a turma mais radical, um risco desnecessário, uma coi- sa até meio passée, quando dispomos de recursos como os programas de conversa e as webcams. Tudo muito certo, tudo muito bom, mas me incluo no time 60 dos que acham que, nesse passo, vamos nos resig- nar de vez a viver em tocas e morder, se por acaso toparmos inesperadamente um semelhante. Esse pro- gresso para mim é retrocesso. Assim como, do ponto de vista do leitor, tenho 65 certeza de que encontrarei companheiros de ideal, em relação a esse negócio de máquina de ler livros, dos quais aquele em que mais se fala é o já famoso Kindle. Para quem não gosta de livros e apenas os usa por- que precisa e não pode evitar, com certeza terá utili- 70 dade. Para quem tem necessidade de ler notícias apressadamente, também. E, enfim, quebrará o galho de uma porção de gente, em áreas que nem podem ser previstas agora. Mas, para quem gosta de ler como eu e vocês (se 75 não gostassem, não estariam lendo isto aqui, achariam coisa melhor para fazer sem muita dificuldade), as trapizongas que estão criando para se ler já chegam causando perplexidade por uma razão elementar, que não pode deixar de ter ocorrido a quem quer que haja 80 pensado um pouquinho sobre o assunto. Antes dessa tremenda invenção, qualquer um podia pegar um livro e lê-lo, tendo como equipamento indispensável no má- ximo, uns óculos. De agora em diante, se a moda pe- gar, isso acabará sendo inviável. Escapa-me à com- 85 preensão o progresso contido num livro que requer um aparelho – e não tão baratinho assim – para ser lido, quando hoje não se precisa de nada, basta saber ler. (...) Quanto ao trabalho, principalmente mental, que o livro dá ao leitor, pergunta-se: a ideia não era 90 essa? Com certeza não chegarei até lá, mas antevejo o dia em que o livro impresso será apresentado como a última novidade.
João Ubaldo Ribeiro, in O Globo
No trecho “... e quem não gostar pode descer do bonde.” (l. 22-23), o autor alude a quem não gosta de:
a)
ter saudade dos velhos tempos muito trabalhosos. |
b)
escrever com papel-carbono ensanduichado entre laudas. |
c)
adotar as novas ações decorrentes do uso do computador. |
d)
lidar com máquinas de escrever, dicionários e enciclopédias. |
e)
fazer pesquisa sobre ortografia para a composição da matéria. |
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