Atenção: A(s) questão(ões) a seguir refere(m)-se ao texto seguinte.
Procuro um documento de que preciso com urgência. Não o encontro, mas me demoro a decifrar minha própria letra, nas notas de um caderno esquecido que os misteriosos movimentos da papelada pelas minhas gavetas fizeram vir à tona. Isso é o que dá encanto ao costume da gente ter tudo desarrumado. Tenho uma secretária que é um gênio nesse sentido. Perdeu, outro dia, cinquenta páginas de uma tradução que tanto me custou.
Tem um extraordinário senso divinatório: rasga apenas o que é estritamente necessário guardar, mas conserva com rigoroso carinho o recibo da segunda prestação de um aparelho de rádio que comprei em S. Paulo em 1941. Isso fornece algumas emoções líricas inesperadas: quem não se comove de repente quando está procurando um aviso de banco e encontra uma conta de hotel de Teresina de quatro anos atrás, com a discriminação das despesas extraordinárias, inclusive uma garrafa de água mineral? Caio em estado de pureza e humildade: tomar uma água mineral em Teresina, num quarto de hotel, quatro anos atrás...
Há também papéis de visão amarga, que eu deveria ter rasgado dez anos atrás; mas a mão caprichosa de minha jovem secretária, que os preservou carinhosamente, não será a própria mão da consciência a me apontar esse remorso velho, a me dizer que devo lembrar o quanto posso ser inconsciente e egoísta? Seria melhor talvez esquecer isso; e tento me defender diante desses papéis velhos que me acusam do fundo do passado. Não, eu não fui mau; andava tonto; e pelo menos fui sincero...
Meus arquivos, na sua desordem, não revelam apenas a imaginação desordenada e o capricho estranho da minha secretária. Revelam a desarrumação mais profunda que não é de meus papéis, é da minha vida.
(Adaptado de Rubem Braga, O homem rouco)
Diante do singular modo pelo qual a secretária cumpre suas funções, o autor
a)
mostra-se raivoso, sobretudo pelo extravio de documentos, mas logo releva a evidente ineficácia da moça. |
b)
afeta impaciência, mas acaba entendendo que os critérios da moça, ao contrário dos seus, regem-se pela plena objetividade. |
c)
ironiza as disparidades de critério, mas se deixa levar pela memória lírica e crítica que lhe despertam remotos papéis. |
d)
lamenta tamanha eficácia, que acaba por levá-lo a confrontar-se, melancólico, com achados de memória indesejável. |
e)
diverte-se com os critérios confusos, enquanto vai se confrontando e se regozijando com os testemunhos de tempos mais felizes. |
Copyright © Tecnolegis - 2010 - 2024 - Todos os direitos reservados.