O texto que segue foi extraído do segundo capítulo da novela A indesejada aposentadoria, do escritor maranhense Josué Montello (*1917 — †2006). Contemporâneo dos escritores que fizeram o romance de 30, Montello enveredou por outro caminho: explorou a narrativa urbana. Escreveu uma das obras-primas da literatura brasileira: Os tambores de São Luís (1975). A novela A indesejada aposentadoria, de 1972, conta a história de Guihermino Pereira, um funcionário público, já nas vésperas de se aposentar.
53 Guilhermino pertencia a uma casta de 54 burocratas que já desapareceu de nossas 55 repartições públicas. De sua espécie talvez 56 tenha sido o derradeiro exemplar conhecido, 57 tanto no trajo quanto nos modos e na figura. 58 Nos últimos tempos de sua existência 59 medíocre, já era um anacronismo. Por isso 60 mesmo está ele a reclamar papel e tinta, 61 únicos instrumentos possíveis de sua 62 merecida sobrevivência. Não propriamente 63 para servir de paradigma, acentue-se logo — 64 mas para ilustrar e exprimir com o seu modelo 65 uma casta que o tempo consumiu. 66 Era magro, alto, rosto comprido, com um 67 pouco de poste e outro tanto de Dom Quixote. 68 Deste só tinha a figura, não a índole 69 romântica: era mesmo o oposto do 70 personagem de Cervantes, na sua conformada 71 aceitação da vida. Tinha as orelhas um pouco 72 saltadas do crânio, o pomo-de-adão saliente, 73 e era calvo, de uma calvície bem composta, 74 que lhe adoçava a fisionomia subalterna. 75 Ao chegar à repartição no seu lento passo 76 de cegonha, sempre de guarda-chuva 77 pendente do braço, trocava o paletó de 78 casemira azul por outro de alpaca preta e 79 instalava-se na sua cadeira rotativa. Sentado, 80 sua longa espinha dorsal vergava, numa curva 81 de caniço puxado pelo peixe, que no seu caso 82 eram a caneta e a pena. Quando se erguia, 83 parecia desembainhar a espinha, crescendo de 84 tamanho. 85 Guilhermino ali sentava às onze horas, ou 86 pouco antes e às cinco e trinta se levantava 87 para ir embora. Conservador por natureza, 88 teve ele a boa fortuna de servir sempre na 89 mesma repartição, no mesmo prédio e na 90 mesma sala, desde que entrou no serviço 91 público. Ao ser empossado, deram-lhe aquela 92 mesa. Não queria outra. 93 A repartição, com a sua sala, os seus 94 móveis e os seus funcionários, constituía o 95 mundo ideal de Guilhermino. Somente ali, 96 experimentava a sensação ambiental de 97 plenitude que há de gozar o peixe na água e o 98 pássaro nos ares. 99 Entretanto, malgrado a euforia que o 100 deixava mais a gosto na repartição do que na 101 porta-e-janela de seu modesto lar suburbano, 102 Guilhermino nunca deixava de abandonar a 103 mesa de trabalho à hora fixada no Regimento 104 para o fim do expediente. 105 — A lei é a lei — dizia. 106 Não há exagero em afirmar-se que a sua 107 casa de subúrbio, adornada de cortinas de 108 renda, com um vaso de tinhorão à entrada, 109 era, para ele, o lugar onde aguardava que a 110 repartição voltasse a abrir: de pijama, os pés 111 nos chinelos de trança, lendo o seu jornal ou 112 conversando com os vizinhos, estava ali de 113 passagem. 114 Para sermos exatos, era na repartição, à 115 sua mesa de trabalho, que Guilhermino 116 Pereira se sentia realmente em casa.
Josué Montello. A indesejada aposentadoria. Capítulo II, p. 11-14. Texto adaptado.
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