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Comentários / LIQUIGÁS - Profissional Júnior - Direito - CESGRANRIO - 2012 - Prova Objetiva


Eu sei, mas não devia

             Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
                          A gente se acostuma a morar em apartamentos
             de fundos e a não ter outra vista que não as janelas
             ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostu-
5           ma a não olhar para fora. E, porque não olha para
             fora, logo se acostuma a não abrir de todo as corti-
             nas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostu-
             ma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se
             acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a
10         amplidão.
                          A gente se acostuma a acordar de manhã so-
             bressaltado porque está na hora. A tomar o café cor-
             rendo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus
             porque não pode perder o tempo da viagem. A comer
15        sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do tra-
             balho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque
             está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter
             vivido o dia.
                          A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre
20        a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e
             que haja números para os mortos. E, aceitando os
             números, aceita não acreditar nas negociações de
             paz. E, não acreditando nas negociações de paz,
             aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa
25        duração.
                          A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e
             ouvir ao telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as
             pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser igno-
             rado quando precisava tanto ser visto.
30                      A gente se acostuma a pagar por tudo o que de-
             seja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o
             dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que
             precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do
             que as coisas valem. [...] E a procurar mais trabalho,
35        para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar
             nas filas em que se cobra. [...]
                          A gente se acostuma à poluição. Às salas fe-
             chadas de ar-condicionado e cheiro de cigarro. À luz
             artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos le-
40        vam na luz natural. Às bactérias da água potável. À
             contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios.
             Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo
             de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não
             colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
45                     A gente se acostuma a coisas de mais, para não
             sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, 
             vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, 
             uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente
             senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se
50        a praia está contaminada, a gente molha só os pés e
             sua no resto do corpo. [...] E se no fim de semana não
             há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda
             fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
                         A gente se acostuma para não se ralar na aspe-
55        reza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar
             feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e
             baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma
             para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que,
              gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. p. 9. Adaptado.

Questão:

No segundo parágrafo do texto, a autora propõe uma relação de causa e efeito para justificar seu ponto de vista sobre o tema abordado a partir do emprego do conectivo porque, cuja grafia é orientada por seu valor gramatical.

Está também grafado corretamente o que se destaca em:

Resposta errada
a)

Sei porquê você chorou ontem.

Resposta errada
b)

Não sei o por quê de tanta pressa.

Resposta errada
c)

Ele está triste porquê foi transferido.

Resposta correta
d)

Não sei o motivo por que ele não veio.

Resposta errada
e)

Quero saber porque você não foi à festa.

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